sábado, 28 de agosto de 2010

JOÃO GUIMARÃES ROSA

Já sentiu o frio ar que é a saudade?
João Guimarães Rosa (1908-1967), escritor mineiro.

O CINEMA E A POESIA


Brilho de uma Paixão (Bright Star - Reino Unido/Austrália/ França/2009)

Em 1819, o poeta John Keats inicia um romance com Fanny Brawne.
O relacionamento dura apenas três anos,
sendo subitamente interrompido
pela morte prematura de Keats, aos 25 anos.
Uma história de amor real,
narrada sob o ponto de vista da jovem Fanny.

A poesia de Keats, a magia do cinema,
Eis um raro momento de beleza,
Tão raro e ao mesmo tempo tão presente.
E a vida segue repleta de contrastes.

John Keats nasceu em outubro de 1795 na Inglaterra,
sem imaginar que se tornaria um dos maiores poetas do romantismo inglês.
Estudou medicina mas abandonou a carreira
para buscar na poesia "a verdade da imaginação".
Suas "odes" se tornaram uma grande influência
para escritores e críticos do século XXI
- como os versos finais de "Ode sobre uma urna grega" ,
considerados enigmáticos e ainda discutidos por estudiosos da poesia inglesa:
"Beleza é verdade, a verdade da beleza
É tudo o que há para saber e nada mais"
Considerado muito espirituoso, simpático e inteligente,
Keats circulou entre autores importantes da época como Leigh Hunt e Shelley.
Seus primeiros livros de poesia não foram aceitos pela crítica,
mas o próprio Keaton (como num presságio) considerou "coisas de momento"
- disse o poeta: "Acho que estarei entre os poetas ingleses depois da minha morte".
Suas cartas são consideradas de inteligência singular,
com informações sobre o que considerava poesia
como a famosa frase "se a poesia não surgir tão naturalmente quanto as folhas em uma árvore,
é melhor que não apareça mesmo".
Keaton morreu cedo, aos 25 anos, de tuberculose.


Endymion (trecho)
O que é belo há de ser eternamente
Uma alegria, e há de seguir presente.
Não morre; onde quer que a vida breve
Nos leve, há de nos dar um sono leve,
Cheio de sonhos e de calmo alento.
Assim, cabe tecer cada momento
Nessa grinalda que nos entretece
À terra, apesar da pouca messe
De nobres naturezas, das agruras,
Das nossas tristes aflições escuras,
Das duras dores. Sim, ainda que rara,
Alguma forma de beleza aclara
As névoas da alma. O sol e a lua estão
Luzindo e há sempre uma árvore onde vão
Sombrear-se as ovelhas; cravos, cachos
De uvas num mundo verde; riachos
Que refrescam, e o bálsamo da aragem
Que ameniza o calor; musgo, folhagem,
Campos, aromas, flores, grãos, sementes,
E a grandeza do fim que aos imponentes
Mortos pensamos recobrir de glória,
E os contos encantados na memória:
Fonte sem fim dessa imortal bebida
Que vem do céus e alenta a nossa vida.


Endymion (trecho)

A thing of beauty is a joy for ever:
Its loveliness increases;
it will never Pass into nothingness;
but still will keep
A bower quiet for us, and a sleep
Full of sweet dreams, and health, and quiet breathing.
Therefore, on every morrow, are we wreathing
A flowery band to bind us to the earth,
Spite of despondence, of the inhuman dearth
Of noble natures, of the gloomy days,
Of all the unhealthy and o'er-darkened ways::
Made for our searching: yes, in spite of all,
Some shape of beauty moves away the pall
From our dark spirits. Such the sun, the moon,
Trees old and young, sprouting a shady boon
For simple sheep; and such are daffodils
With the green world they live in; and clear rills
That for themselves a cooling covert make
'Gainst the hot season; the mid forest brake,
Rich with a sprinkling of fair musk-rose blooms:
And such too is the grandeur of the dooms
We have imagined for the mighty dead;
All lovely tales that we have heard or read:
An endless fountain of immortal drink,
Pouring unto us from the heaven's brink.
KEATS, John. "From Endymion" / "Do Endymion".
In: CAMPOS, Augusto de. Byron e Keats: Entreversos.
Traduções de Augusto de Campos. Campinas: Editora Unicamp, 2009.




segunda-feira, 23 de agosto de 2010




O Tempo Seca o Amor


O tempo seca a beleza,

seca o amor, seca as palavras.

Deixa tudo solto, leve,

desunido para sempre

como as areias nas águas.


O tempo seca a saudade,

seca as lembranças e as lágrimas.

Deixa algum retrato, apenas,

vagando seco e vazio

como estas conchas das praias.


O tempo seca o desejo

e suas velhas batalhas.

Seca o frágil arabesco,

vestígio do musgo humano,

na densa turfa mortuária.


Esperarei pelo tempo

com suas conquistas áridas.

Esperarei que te seque,

não na terra, Amor-Perfeito,

num tempo depois das almas.

Cecília Meireles, in 'Retrato Natural'
De um Amor Morto

De um amor morto fica
Um pesado tempo quotidiano
Onde os gestos se esbarram
Ao longo do ano

De um amor morto não fica
Nenhuma memória
O passado se rende
O presente o devora
E os navios do tempo
Agudos e lentos
O levam embora

Pois um amor morto não deixa
Em nós seu retrato
De infinita demora
É apenas um facto
Que a eternidade ignora

Sophia de Mello Breyner Andresen, in "Geografia"
“Quando as águas se juntam, o rio se forma”.
ditado chinês


Dois meses passaram-se da última postagem,
Ausência de palavras,
Dores, solidão, saudades,
Tantas guardadas,
Tantas caladas.

Os Meus Versos

Rasga esses versos que eu te fiz, amor!
Deita-os ao nada, ao pó, ao esquecimento,
Que a cinza os cubra, que os arraste o vento,
Que a tempestade os leve aonde for!
Rasga-os na mente, se os souberes de cor,
Que volte ao nada o nada de um momento!
Julguei-me grande pelo sentimento,
E pelo orgulho ainda sou maior!...
Tanto verso já disse o que eu sonhei!
Tantos penaram já o que eu penei!
Asas que passam, todo o mundo as sente...
Rasgas os meus versos... Pobre endoidecida!
Como se um grande amor cá nesta vida
Não fosse o mesmo amor de toda a gente!...

Florbela Espanca, in "A Mensageira das Violetas"


Crónica da Rapariga à Chuva

"Tantas dores. É estranha, a dor: custa menos do que se pensa,
a partir de certa altura a gente afasta-se dela,
deixa de pertencer-nos.
O que nos pertence é o vazio, uma indiferença esvaída".
5 de Ago de 2010


Há bocadinho fui espreitar à janela e estava uma rapariga lá em baixo, à chuva.
Isto às onze da manhã, a rua deserta e ela imóvel diante da agência de viagens,
sem gabardina sequer, à chuva. Cabelos curtos, sapatos de ténis,
os braços ao comprido do corpo, sozinha como uma estátua.
Não volto à janela porque não quero encontrá-la,
parece acusar-me de uma falta que desconheço,
afigura-se-me um remorso vivo. À chuva.
Não acaba, este inverno, esta solidão magoada, desconfortável.
Faz três anos andava eu à brochinha com o cancro,
sangue por todos os lados, a emagrecer, a sentir-me mal,
a teimar que era uma bactéria qualquer que trouxera do México.
Guadalajara, Guadalajara: deram-me a chave de oiro da cidade:
está lá para dentro, no seu estojo, numa gaveta de armário.
A chave de oiro de uma cidade não abre nada a não ser portas interiores:
e para além das portas interiores quartos vazios na sombra,
cada qual com a sua rapariga à chuva que aliás agora parou,
veio uma suspeita de sol.
Não tarda nada o sol vai-se e a chuva recomeça.
Até quando? Dá ideia que para sempre, nunca mais vai cessar de chover.
E a rapariga ali quieta, não à espera, não por teimosia,
ali apenas, se calhar para sempre também.
Vinte, vinte e cinco anos, sozinha.
Na agência de viagens iluminada empregadas a secretárias, cartazes:
Bermudas, Marrocos, Porto Rico.
O vento feio sacode árvores feias.
Os prédios feios, os automóveis feios, tudo feio.
Não me lembro de um inverno assim sujo, escuro, na minha cidade outrora cheia de luz.
Galhos depenados, nem um pombo, nem um pardal para amostra:
o que sucedeu aos pássaros?
Escrevo isto de luz acesa, com a morte na alma.
Quando estive doente ao menos havia sol, um sol inútil para mim mas sol.
Enfim, julgo que sol ou então eram aquelas lâmpadas todas na minha cara:
- De que vais morrer, António?
- De cancro
e as lâmpadas a aumentarem de intensidade na minha cara.
Tantas dores. É estranha, a dor: custa menos do que se pensa,
a partir de certa altura a gente afasta-se dela, deixa de pertencer-nos.
O que nos pertence é o vazio, uma indiferença esvaída.
Levanto-me da mesa: a rapariga foi-se embora não imagino para onde,
deixou-me sozinho neste apartamento.
O que faço sem ela ali em, baixo, junto à agência de viagens,
Bermudas, Marrocos, Porto Rico?
Fotografias de gente na praia, camelos, palmeiras.
Aqui são tipuanas magras, atormentadas, a água cinzenta a escorrer para as valetas,
ramos com uma única folha, não verde, amarela, quase a soltar-se,
ramos sem nenhuma folha, tortos, magros.
Não fui às Bermudas nem a Marrocos nem a Porto Rico, que conheço eu do mundo?
Janelas fechadas, ninguém a pendurar roupa nas varandas.
Martelam no andar de cima, talvez estejam a crucificar alguém.
Pela aflição dos galhos percebe-se que o vento aumenta.
Daqui a nada estou no restaurante do costume: o
empregado empresta-me um jornal desportivo,
imensos guarda-chuvas numa espécie de vaso junto à porta,
a máquina de vender cigarros a zumbir.
Ligo a ternura eléctrica do calorífero que queima mais do que aquece e me frita a perna.
A ementa não varia, como sempre a mesma coisa: tanto me faz.
Pressa de voltar aqui a fim de continuar a escrever.
Leio a última frase e avanço aos solavancos, este é um ofício esquisitíssimo.
Quando lerem nem sonham o que penei nas frases.
Quer dizer, espero que nem sonhem o que penei nas frases.
Tem de parecer fluido, fácil.
Que dia é hoje? Sei lá, tanto faz. Tanto faz? Tanto faz.
Um relâmpago e logo a seguir sons de penedos enormes a caírem uns por cima dos outros.
Se tivesse quinze anos outra vez jantava com os meus pais, os meus irmãos.
Tenho saudades disso, de fazer parte de uma família.
Esperar, aflitinho, diante do quarto de banho fechado.
Se batiam à porta avisava-se
- Está gente
num berro que os azulejos ampliavam.
Pode parecer ridículo mas adorava voltar a fazer cocó em Benfica.
A banheira com patas de leão, o esquentador pré-histórico,
os perfumes da minha mãe numa mesa, o cheiro da laca dela,
a brilhantina do meu pai, o pente sempre gorduroso,
a escova com que alisava o cabelo apertando-o nas têmporas.
Era o único de nós que fazia a barba.
Acho que também não visitou as Bermudas nem Marrocos nem Porto Rico.
Saía para o hospital de manhã, voltava ao fim do dia e tudo cheirava a cachimbo.
Achava esquisito que tratasse o meu avô por pai, pai era ele, o meu avô era avô.
Esse fazia a barba também. O mundo inteiro fazia a barba menos eu.
Sinto a falta da rapariga lá em baixo, à chuva,
preocupo-me com o que lhe terá acontecido.
Nem quero pensar que a água das valetas a levou,
de mistura com as folhas caídas.
ANTONIO LÔBO ANTUNES